Transferência a partir de uma obra-prima: Hamlet, o neurótico.
Daniel Takeshi Ito
Obras-primas
Para alguns a arte não surte nenhum efeito, nem causa algum prazer. Para outros, uma música, uma pintura, uma escultura ou um poema causam grande comoção. Quanto mais intensa e universal é essa emoção causada pela peça de arte, mais próxima de ser considerada como uma obra-prima. Ou seja, podemos definir uma obra-prima como uma peça de arte manufaturada que chega próximo à perfeição, sendo admirada pela sua beleza e elegância, produzida por um artesão aspirante que se torna, então, um mestre.
Nos tempos atuais, este termo é usualmente empregado para definir qualquer obra de arte considerada extraordinária, nomeadamente para referir a melhor obra de um artista. É recorrente a definição da Mona Lisa como a obraprima de Leonardo Da Vinci. O mesmo se passa com a estátua de David, de Michelangelo; o Hamlet de William Shakespeare; ou a Nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven. Em geral, define-se uma obra-prima sem preocupação de qual o campo da arte ou artista a que está associada, mas em representação da sua contribuição à arte.
A comoção gerada pela obra-prima não é explicada de forma racionalista ou analítica. Algumas das maiores e mais poderosas criações da arte constituem enigmas ainda não resolvidos pela nossa compreensão. Freud (1914) escreve em O Moisés de Michelangelo:
“Sentimo-nos cheios de admiração reverente por elas e as admiramos, mas somos incapazes de dizer o que representam para nós. O que nos prende tão poderosamente só pode ser a intenção do artista, até onde ele conseguiu expressá-la em sua obra e fazernos compreendê-la. Entendo que isso não pode ser simplesmente uma questão de compreensão intelectual; o que ele visa é despertar em nós a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que nele produziu o ímpeto de criar. Mas por que a intenção do artista não poderia ser comunicada e compreendida em palavras, como qualquer outro fato da vida mental? (...) Para descobrir sua intenção, contudo, tenho primeiro de descobrir o significado e o conteúdo do que se acha representado em sua obra; devo, em outras palavras, ser capaz de interpretá-la.”
O que diferencia uma obra-prima de outras peças de arte é a capacidade que ela possui de transferir algum conteúdo do inconsciente do artista para pessoa que de alguma forma identifica em si esse sentimento. A transferência em si pode ser entendida como: (1) deslocamento do investimento de representações psíquicas; (2) segundo Ferenczi, algo que existe em toda relação humana; (3) tem caráter repetitivo, referindo sempre a fragmentos da vida sexual infantil; (4) Freud ligou-a ao complexo de Édipo, depois colocou a ênfase na importância de sua utilização como via de acesso ao desejo inconsciente; (5) para Melanie Klein é concebida como uma reencenação de todas as fantasias do inconsciente; (6) para Lacan ela é inscrita numa relação entre o eu do paciente com a posição do Grande Outro; e (7) depois definiu como: encenação da realidade do inconsciente. É uma manifestação do inconsciente, atemporal e utiliza vários recursos para ser expressar, cada indivíduo possui capacidade de transferir seu conteúdo inconsciente. Há diversas formas e cada pessoa possui sua singularidade própria, alguns conseguem pela música, outros em pinturas ou através da literatura. Quando é estabelecida a transferência com a obra, entramos em contato com o inconsciente do artista do momento da construção.
Para Freud, Édipo Rei e Hamlet são consideradas como obras-primas da literatura de todos os tempos. Hamlet tem suas raízes no mesmo solo que Édipo Rei. A obra de Sófocles auxiliou Freud na elaboração do conceito de Complexo de Édipo. Não foi intenção consciente de Shakespeare, mas algum evento real instigou o poeta à sua representação, no sentido de que o inconsciente do autor compreendeu o inconsciente de seu herói. É difícil acreditar que exista coincidência, pois, são de épocas e autores diferentes, mas tratam o mesmo tema central. É abordado o parricídio motivado pela rivalidade sexual por uma mulher. Desencadeado pelo conjunto de desejos amorosos e hostis que a criança experimenta com relação aos seus pais.
Núcleo central na estruturação de toda e qualquer neurose. Surgindo como papel organizador essencial para estruturação da personalidade. Abrindo caminho para a triangulação, possibilitando o processo de renúncia, aceitação das diferenças entre os sexos. Determinando a formação das identificações e gerando uma série de sentimentos de forte intensidade: abandono, traição, ódio, vingança, que podem repercutir como medo, culpa, excesso de identificação projetiva ou angústia de castração.
São obras-primas por abordarem de forma tão brilhante um conflito que todos passamos. No ensaio Quarta Lição, Freud (1909) escreve que:
“(...) o mito do rei Édipo que, tendo matado o pai, tomou a mãe por mulher, é uma manifestação pouco modificada do desejo infantil, contra o qual se levantam mais tarde, como repulsa, as barreiras do incesto. O Hamlet de Shakespeare assenta sobre a mesma base, embora mais velada, do complexo do incesto”.
Ou seja, em Édipo Rei observa-se a tragédia da revelação, que simboliza o universal do inconsciente disfarçado de destino. Já em Hamlet é visto o drama do recalcamento, que remete ao nascimento de uma subjetividade culpada contemporânea.
Interpretações sobre Hamlet
A obra de Shakespeare é extremamente rica e possibilita inúmeras interpretações. Para Goethe a verdadeira tragédia de Hamlet, ou que pelo menos mais o tocou, deu-se pela súbita ruína que acometeu aquele jovem na sua até então vida segura e de aparente bom convívio familiar. Num repente, com a súbita aparição do espectro do pai, deu-se um terremoto na vida dele.
Sofreu desmoronamento total da confiança na ordem ética que era representada pelo elo que o ligava aos pais, os quais amava e honrava, e que se rompera de uma maneira tão horrenda ao descobrir a sordidez que envolvia a morte do pai e o repentino casamento da sua mãe. Tornou-se uma espécie de paradigma involuntário do intelectual, pois quase sempre suas ações eram paralisadas pela exuberante atividade do seu pensamento. Para Maquiavel, o personagem de Shakespeare, bem ao contrário do parecer de Goethe, nada tem de rapaz inocente. Hamlet é astucioso e até temerário em seus ataques. Utiliza-se tanto da dureza selvagem no seu trato com Ofélia, como é capaz do mais absoluto sangue frio quando, ardilosamente, se desfaz dos já citados cortesãos que poderiam atrapalhar o seu plano. Não é um personagem débil. Ao contrário. É o mais forte da peça. Impõe respeito e temor. Para Freud, em Édipo Rei, a fantasia infantil imaginária que se desenvolve por debaixo do texto é abertamente exposta e realizada, como o seria num sonho. Em Hamlet ela permanece recalcada, e tal como no caso de uma neurose, só ficamos cientes de sua existência através de suas consequências inibidoras. Hamlet é um neurótico devido a natureza particular da tarefa com que se defrontou, ou seja, a morte de seu pai que até ali ficou recalcada, esforçou-se por se impor.
Hamlet, o neurótico recalcado
Na estruturação da obra, Shakespeare contextualiza o personagem de forma brilhante, ao colocá-lo interagindo com outros personagens ou mesmo lidando com seus conflitos internos. Para Freud (1914):
“(...) nos reconhecemos no herói; somos susceptíveis ao mesmo conflito que ele. Quando reconhecemos esse conflito, não podemos esquecer que o personagem se trata de um doente, da mesma forma que ele, ao tomar conhecimento de seu conflito, deixa de ser doente. Coube a Shakespeare colocar-nos nessa mesma doença, e a melhor maneira de consegui-lo foi fazer com que sigamos o curso de seu desenvolvimento junto com aquele que adoece.”
A abordagem da neurose de Hamlet feita por Shakespeare surge em vários momentos: em sua fala, em suas ações, inclusive em seus falsos delírios. Ele é colocado pelo poeta em um drama existencial, frente a frente com a sua castração e o surgimento do comportamento neurótico.
Diferentemente de Édipo Rei, a trama ocorre após a morte do pai (o rei) e se desenvolve na tentativa de resolução desse conflito. Hamlet é um neurótico recalcado, porque é capaz de fazer qualquer coisa, menos se vingar do homem que matou seu pai e tomou seu lugar junto a sua mãe, o homem que lhe mostra os desejos recalcados de sua própria infância realizados. Desse modo, o ódio que deveria impeli-lo à vingança é nele substituído por autorecriminações, por escrúpulos de consciência que o fazem lembrar que ele próprio, literalmente, não é melhor do que o pecador a quem deve punir.
Podemos observar as características neuróticas do personagem, como a triangulação, a castração, o complexo de Édipo. Por conclusão, alguns trechos abaixo, grifados e comentados por mim:
ATO PRIMEIRO
Cena II
REI: Assim sendo, tomamos para esposa aquela que já foi nossa irmã e é agora, nossa rainha, a imperial consorte deste Estado guerreiro, muito embora por assim dizer, com uma alegria desolada, com um olhar risonho e outro derramando lágrimas, com regozijo no funeral e réquiem no casamento, pesando em igual balança o prazer e a dor.
REI: Mas, agora, Hamlet meu sobrinho e meu filho...
HAMLET: Morto há apenas dois meses! Não, não há tanto tempo assim: nem dois! Um rei tão excelente... mas diferente deste Hipérion, deus do sol, o é de um sátiro! Tão afetuoso para minha mãe, que não teria permitido que as auras celestes roçassem com força o seu rosto.
HORÁCIO: Meu senhor, vim para assistir ao funeral de vosso pai.
HAMLET: Por favor, não zombes de mim, amigo. Acho que foi para assistir ao casamento de minha mãe.
HORÁCIO: Com efeito, meu senhor, este seguiu bem de perto àquele.
HORÁCIO: Eu o vi uma vez. Era um grande rei!
HAMLET: Era um homem, em tudo e por tudo. Nunca haverá outro como ele.
HORÁCIO: O rei vosso pai, meu senhor.
Comentários: Logo no início da obra é discutida a morte do Rei. Hamlet parece não aceitar que outra pessoa tenha realizado seu desejo, para ficar com sua mãe. Reconhece a morte do pai e a impossibilidade de unir-se à mãe, então, alia-se com o pai morto e odeia o novo rei.
ATO SEGUNDO
Cena II
REI: Ele me diz, minha querida Gertrudes, ter encontrado a origem e fonte de toda a perturbação de vosso filho.
RAINHA: Não tenho dúvida de que a razão principal não seja outra senão a morte do pai e nosso apressado casamento.
Comentários: O novo rei acha que sabe a verdadeira causa da loucura de Hamlet, que seria uma desilusão amorosa por Ofélia. Já a Rainha reconhece a existência de duas triangulações e em ambas à exclusão de Hamlet.
ATO TERCEIRO
Cena I
REI: Ser ou não ser, eis a questão! Que é mais nobre para alma: sofrer os dardos e setas de um destino cruel, ou pegar em armas contra um mar de calamidades para pôr-lhes fim, resistindo? Morrer... dormir; nada mais! E com o sono, dizem, terminamos o pesar do coração e os inúmeros naturais conflitos que constituem a herança de carne! Que fim poderia se mais devotamente desejado?
POLÔNIO (referindo-se a Hamlet): Mas continuo acreditando que a origem e causa de sua dor provêm de um amor desprezado.
Comentários: Hamlet entra em dilema. Fica paralisado, novamente, entre agir ou continuar hesitando. Sobre a fala de Polônio: esse amor desprezado é o da mãe e não de Ofélia (sua filha).
Cena III
Cena escrita por Hamlet: “Ouvem-se oboés. Começa a pantomima. Entram o Rei e a Rainha muito amorosos um com o outro, abraçando-se. Ela se ajoelha e lhe faz protestos de amor. Ele a faz levantar-se e reclina a cabeça no seu pescoço. Ele se deita num leito de flores; ela, vendo-o adormecido, retira-se. Logo, aparece uma pessoa, tira a coroa do Rei, beija-a; derrama veneno nos ouvidos do Rei e sai. Volta a Rainha; encontra o Rei morto e mostra grande desespero. O Envenenador, acompanhado por dois ou três personagens mudos, volta novamente, fingindo lamentar-se com ela. Levam para fora o cadáver. O Envenenador corteja a Rainha, oferecendo-lhe presentes. A princípio mostra ela alguma relutância; mas acaba por aceitar-lhe o amor. (Saem)”
RAINHA (ATOR): Que eu seja amaldiçoada, se tiver segundo esposo! Ninguém se casa com o segundo, sem matar o primeiro.
Comentários: A cena foi escrita por Hamlet e descreve o que ele supõe do que ocorreu. É claro a escolha da mãe pelo pai, como par amoroso e a interdição. O envenenador não é identificado, poderia ser tanto Hamlet (seu desejo) como o irmão do Rei. Na fala da Rainha interpretado por um ator é observado a ira de Hamlet por não ter sido escolhido e o reconhecimento do desejo de morte de seu pai.
Cena IV
ESPECTRO: Não te esqueças. Só te apareço para aguçar os teus propósitos já quase embotados.
RAINHA: Com quem estás falando?
HAMLET: Não estais vendo?
RAINHA: Não vejo nada; todavia, estou vendo tudo quanto existe ao redor de mim.
HAMLET: Nem escutaste nada?
RAINHA: Nada, a não ser a nós próprios.
HAMLET: Como! Olha para lá! Veja como se afasta furtivamente! Meu pai, com o traje que usava em vida!
RAINHA: É pura invenção de teu espírito.
Comentários: O fantasma (fantasia ou imaginação) do pai só aparece para o filho. Representação da fantasia originária.
Bibliografia
Freud S. “Carta 71”. Vol I. “Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas, 2001”.
Freud S. “Sonhos sobre a morte de pessoas queridas”. Vol IV. “Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas, 2001”.
Freud S. “Personagens psicopáticos no palco”. Volume VII. “Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas, 2001”.
Freud S. “Quarta lição.” Vol XI. “Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas, 2001”.
Freud S. “O Moisés de Michelangelo.” Volume XIII. “Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas, 2001”.
Freud S. “Dostoievski e o parricídio”. Vol XXI. “Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas, 2001”.
Roudinesco, E. & Plon, M. “Dicionário de psicanálise”. Ed. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 1998.
Shakespeare W. “Hamlet.” tradução de Pietro Nassetti. Martin Claret: São Paulo, 2008.
Sófocles. “A trilogia tebana.” in “Introdução e notas de Mário da Gama Kury.”Ed. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 2006.
Zimerman, David E. in “Fundamentos Psicanalíticos.” Artes Médicas Sul Ltda: Porto Alegre, 1999.
Comentários
Postar um comentário