Didática na Transmissão da Psicanálise ou Antididatismo?

Erivelto Rocha

“A virtude é preguiçosa e avara, não gasta
tempo nem papel; só o interesse é ativo e
pródigo.”1

O presente texto é uma reflexão não de resultados dogmáticos de uma formação e muito menos de um sistema de pensamento fechado em uma teoria, mas reflexões de questões referentes a um processo de ruptura, apreensão e construção de um saber que está fundado em uma prática e em uma teoria.
Não posso me eximir desse ato de voltar sobre mim mesmo, sendo objeto, sobretudo, de um conhecimento que envolve sentimentos e condições de descoberta da subjetividade de conceitos que compõem um saber.
Como sujeito de conhecimento sempre há o esforço de elevar os saberes a patamares de uma ciência supostamente detentora de poder, isto porque estou inserido em um contexto histórico de séculos de construção, com a perspectiva de progresso e controle objetivo de um discurso de autoridade que se sobrepõe às experiências, no mais, que sempre segue um caráter metodológico delimitador dos que sabem e dos que não sabem, dos que ensinam e dos que aprendem, metodologia que define dois lugares.
Então, encontro-me em um espaço onde existe a mobilização das posições, não se trata de rebaixamento de patamares, ao contrário, há a elevação da experiência, da experiência interna, do subjetivo, promovendo um processo de ruptura de um saber judicativo exterior para algo que está em construção.
Este algo que está em construção refere-se ao sujeito em sua totalidade explícito em seu inconsciente. Como está em construção, todo o trabalho se relaciona com particularidades não repetidas.
Apesar, de não conseguir, ainda, me desvencilhar das vaidades do saber poder, remeto-me a Lacan (1956), com o objetivo de esclarecer o centro das minhas reflexões, mormente às rupturas e apreensões:

Pois se pudemos definir ironicamente a psicanálise como o tratamento que se espera de um psicanalista, é bem no entanto a primeira que decide da qualidade do segundo.”2

Entendo aqui um ponto de compreensão indispensável pelo momento que estou passando, que é de empatia e desenvolvimento de um conhecimento transformador em princípio, que está inserido no fenômeno da transferência, elemento indispensável na formação do psicanalista, isto é, material indispensável no processo de comunicação e transmissão de um saber.
A psicanálise como saber pode ser ensinado, o professor pode escolher as estratégias de divulgação da psicanálise, pode fazer uma leitura histórica epistemológica, pode abordar os aspectos possíveis da construção da psicanálise como ciência, pode atribuir significados simples ou complexos aos seus conceitos, pode discutir se foram ou não distorcidos ou deformados os conceitos freudianos.
Mas a psicanálise como saber-prática para formação de psicanalista, ela não é ensinada, ela não está na lógica didática de ensino-aprendizagem. Ela é transmitida. Para definir o que entendo como transmissão. Cito Nasio (1987):

Quando há efetivamente transmissão, dever-se-ia falar então de produção de um saber, isto é, não transmissão de um saber textual, referencial, teórico, mas produção de um saber inconsciente(...).” 3

Pretendo aqui com essa citação, revelar o que sucita em mim, que o saber não está acabado pronto e estático, mas primeiro reconhecer que o saber está sendo construído, e que é preciso ampliar a capacidade de percepção e compreensão de um saber que se faz na prática clínica, como analista e analisando.
É preciso notar, antes de mais nada, a mudança de professor, para professor analista, aquele que tem experiência clínica. O processo de transmissão é muito diferente do que é feito pelo professor que ensina. Assim, reconheço o momento angustiante e ao mesmo tempo enriquecedor que estou passando. E reconheço o processo interno desencadeador de uma praxis de escuta.
Neste campo considero necessário e importante assinalar que a instituição que escolhi para me formar é asseguradora de minha vida, nesse processo de formação de psicanalista. Por que, ela, a instituição, é detentora de uma psicanálise e de uma prática psicanalítica, seja plural ou ortodoxa. Como uma mãe, ela nos angustia e nos satisfaz, e nesse duplo movimento é preciso saber-se como membro de um projeto, o indivíduo fica submetido portando ao sonho de seus idealizadores, e narcisicamente tem de sustentar e assegurar sua transmissão.
Entretanto, na medida em que vou criando laços entre instituição e saber, vou formando instrumentos que permitem transcender o momento presente, reconhecendo o dualismo fazer-saber.
Como psicanalista em formação, a transferência só é possível e implica nesta condição de sujeito desejante, instaurando-se em um fluxo de construção de conhecimento, investido dos atributos simbólicos e ideais da instituição de formação.
Dispondo-me a fazer esta reflexão sobre a transmissão da psicanálise, sinto-me inclinado a fazer estas considerações, e tento na medida do possível verter para o contexto da instituição, dada às características clínico-pedagógicas, escolhidas pela mesma. Assim, como diz Duvidovich (2007), sobre a formação em psicanálise:

“A formação só pode ser artesanal, (...) se trata de um percurso necessariamente singular (...) O analista escuta com seu mundo interno (...). Ele escuta com sua história de vida, com suas habilidades, com suas dificuldades, seus conflitos, (...) ele escuta com o próprio inconsciente. Qualquer organização, qualquer instituição ou grupo que elimine os efeitos do inconsciente, não forma psicanalistas.” 4

Se for o inconsciente, como aponto no início do texto, o que torna inteligível o humano, então não podemos ter uma doutrina de ensino, um método fechado que dê a direção da aprendizagem e que desemboque num esquema dogmático.
Neste sentido, as didáticas formais se tornam obsoletas, e passo a considerar que as minhas formulações teóricas passarão pelo crivo das minhas realizações, verificadas no inconsciente, explicadas na mesma ordem e preestabelecendo a transmissão.
Com efeito, instala-se em mim grande aflição, pois vejo que aprender psicanálise não é como qualquer disciplina, além do seu repertório conceitual
específico que devo me familiarizar, preciso de habilidades de abstração, elaboração e compreensão da experiência.
Pensar em termos de sentimentos e afetos, elementos que compõem a experiência, e pensar na relação interpessoal, me remete a entender que a transferência deve ser concebida como ponto central para a transmissão. E assim devidamente transpostos os limites, que são reconhecidos pelo consciente, permitindo que o eu desejante aprenda um amplo domínio da experiência do indivíduo humano.

Bibliografia

1- Assis, M. A Cartomante in Contos: “Uma Antologia”. Cia das Letras: São Paulo,
1998.

2- Lacan, J. Situação da Psicanálise e Formação do Psicanalista em 1956. in: “Escritos”. Ed. Perspectiva: São Paulo, 1996.

3- Nasio, J-D. Questões Abertas Sobre a Transferência. Entrevista. in “Nos limites da transferência.” org. J-D Nasio. Ed. Papirus: Campinas, 1987.

4- Duvidovich, E. Entrevista Revista “Falo”. No 2 - São Paulo, 2007.

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